quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Continhos... Instantâneos

"Brinde"
Ela tinha uma paixão imensa por chocolate, uma adoração inquestionável pelo final de tarde e por aqueles 30 minutos de sossego absoluto que só aconteciam à 2ª feira, o dia que o patrão, amigo da sua família, entendia usar como prolongamento do fim-de-semana.
Num desses finais de tarde, deu consigo a olhar para a mensagem com que o Dr. Américo a despediu nesse mesmo dia. Foi num "post it" entregue pela sua substituta - 20 anos mais "descascada" - que Helena leu um simples "Põe-te a andar. Está aqui o cheque e bem gordo, já com as tuas contas todas feitas".
É, foi despedida da secretária onde envelheceu 15 anos entre berros e horas extra sem conta. Mas, por outro lado, estava finalmente livre de contar os tostões daquele salário de miséria pago a más horas que, todos os santos meses, ditava €560 e mal dava para pagar a renda do quarto, os remédios da mãe e o vício doce com que se presenteava todos os dias, um chocolate com brinde.
Este cheque, ao menos, tinha mais dois zeros e poderia descontá-lo no dia seguinte, para variar.
De repente, despiu o ar triste de quem não sabe onde encontrar o amanhã e abriu um sorriso. E porque era um dia diferente, naquela mesa de café que conhecia mesa a mesa, desta vez, pediu um chocolate quente.
- Espero que lhe saiba bem. - Disse o empregado.
- Saberá como nunca, acredite. - Respondeu.
Pegou no cheque e, centímetro a centímetro, colocou-o dentro da caneca a ferver.
O papel foi encorrilhando e os dígitos foram borratando ao sabor de um amargo dia... Adicionou-lhe os dois pacotes de açúcar e verteu uma lágrima que se diluiu pelo rosto naquele instante bizarro.
- Está tudo bem consigo? - Perguntou o empregado.
- Sim, obrigado. - Respondeu.
- Não precisa de nada? Tem a certeza? - Insistiu o empregado.
- Tudo o que preciso já tenho.
- Foi o seu patrão, o Dr. Américo...? Não ligue, ele é assim, isso amanhã passa-lhe...
- Não passa, não.
- Tenha calma menina Helena, verá que tudo se resolve...
- Eu sei, e resolver-se-á já amanhã... É que por cada chocolate que comi até hoje comprei uma acção da empresa e, por estranho que possa parecer, neste momento estou a dar início à minha dieta e, como accionista principal, vou começar por cortar nas "gorduras" da empresa, nos "pesos mortos"...
- Ah...
- Por acaso não tem aí um guardanapo daqueles fininhos? Sim, daqueles que deixam passar a manteiga das torradas para as mãos?!
- Tenho, claro que tenho.
- Então, se não se importa, arranje-me uns mil e um pacote de manteiga ressequida... Quero escrever ao Dr. Américo cada uma dos insultos com que me brindou até hoje para juntar à carta de despedimento dele. Acho que ele está a precisar de um fim-de-semana com "ponte", e é bom ter o que ler como brinde.

Francisco Moreira

5 comentários:

Lu.a disse...

:))
Está excelente!

FM disse...

Obrigado Lu.a.
Beijos com Essências.

Mary disse...

E são tantos os casos assim...Infelizmente :(
Muito bom o teu texto e a tom "realístico" com que o descreves.
beijo gordo para ti

FM disse...

Obrigado Afilhada!(risos)
Beijos com Carinho.

paulofski disse...

Belíssimo texto Francisco. Em poucas linhas transmites o estado de desgraça de muitas Helenas deste país.

Abraço

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