domingo, 22 de junho de 2008

Lágrima do Oriente - XXX - ÚLTIMO

Lágrima do Oriente
"Amor com Amor se Paga"
30º Capítulo
(a história, até aqui, pode ser lida no link à direita)

- Allan acorda! Acorda filho, já é tarde!
- Ahh, ahh, olá mãe, que horas são?
- Já é quase uma da tarde filho, até parece que não dormias há anos. Estás bem? Sentes-te bem?
- Tive um sonho tão bonito com a Lu, foi tão verdadeiro, tão espectacular...
- Ainda bem querido, mas agora tens que te levantar, vamos para Lisboa no voo das 16H00 e ainda tens que passar no hotel para apanhar as tuas coisas.
- Mas, onde é que eu estou? Que quarto é este?
- É o quarto da Lu, não te lembras?! Vá, acorda de vez, ainda temos um longo dia pela frente.
- Ahh, pensei que tinha acordado de um enorme pesadelo. Afinal, só a parte bonita do sonho é que não é verdadeira. Mas, por outro lado e feitas bem as contas, não me faltam motivos para sorrir, dois futuros motivos; os meus filhos... Mãe, desculpa, conheces os U2?
- Quem são esses?
- Um destes dias levo-te a conhece-los ao vivo... Vou tomar um banho e desço já.
- É melhor Allan, é que tens lá em baixo uns senhores que querem falar contigo.
- Quem são?
- Pelos vistos são de uma empresa de advogados.
- Advogados?!
Tomei o banho e vesti uma roupa do meu irmão que a minha mãe me tinha colocado na cama, como que adivinhando que não era boa ideia vestir o facto que usara na cerimónia de ontem, ainda por cima todo sujo e ainda algo molhado.
Quando desci, já todos estavam sentados à mesa da sala para almoçar.
- Perdoem o meu atraso, já não dormia assim tão bem há tanto tempo.
- Tudo bem Allan, foi o sono dos justos. Olha, quero apresentar-te os advogados da nossa família, uma equipa que trata de todos os nossos assuntos há quase 20 anos. - Informou-me a Aaliyah.
Cumprimentei-os e adiamos a conversa para depois do almoço. Um almoço com traços Portugueses já que a minha mãe tinha decidido agradecer a hospitalidade da família da Lu cozinhando uma espécie de "Cozido à Grega", uma versão do "Cozido à Portuguesa com ingredientes diferentes. Foi um almoço descontraído onde aproveitamos para falar dos próximos passos na gravidez da Raja e de uma reaproximação entre duas famílias que só se conheceram há poucos dias.
No jardim aguardavam por mim os dois advogados. Informaram-me que a enorme fortuna da Luna estava à minha disposição. Falaram-me de 30 milhões de euros e de mais uma série de propriedades que o pai lhe deixara, incluindo 50% da "Casa da Luz", a outra parte era da Raja, como ficara escrito em testamento.
Perguntei se a Lu - Luna, primeiro nome completo, não tinha deixado nada para os irmãos e para a mãe. Eles disseram-me que todos estavam muito bem de finanças, pois o império deixado pelo pai da Lu era enorme. Informaram-me também que existia uma conta destinada ao nosso filho, neste caso gémeos, com um montante de 20 milhões de euros, dinheiro que seria gerido pela mãe da Lu, caso eu não me importasse.
Todos aqueles números milionários faziam-me confusão, principalmente porque eu e a Lu tínhamos vivido sempre com o suficiente para ter uma vida calma e éramos felizes assim.
- Que dinheiro é que posso movimentar agora? – Perguntei.
- Pode movimentar o que entender. – Disse o mais velho dos advogados.
- Não tenho que ir ao banco ou fazer qualquer coisa?
- Depende. Se quiser dinheiro vivo teremos que ir ao banco.
- E se eu quiser oferecer todo o dinheiro que está à minha disposição?
- O quê?! Oferecer o dinheiro?
- Sim, se eu quiser oferecer todo o dinheiro?
- Bem, só terá que assinar uma procuração e indicar-nos a quem o quer oferecer… Mas, estamos a falar de muito, muito dinheiro.
- Eu imagino. O problema é que nem sei avaliar a quantidade de que me falam…
- Assim por alto, dá para viver muito bem para o resto da sua vida…
- Então quero viver o resto da minha vida como fiz até agora, com o dinheiro que ganho. Ou melhor; pretendo ficar com o suficiente para deixar de pagar o crédito da lavandaria que comprei com a Lu e o irmão dela e pagar o apartamento onde vivíamos. Não sei bem, mas estou a falar de uns 100 mil euros…
- Só isso?! Olhe que a Luna, ao deixar-lhe o dinheiro, tinha como objectivo criar condições para que tivesse uma vida de sonho, uma vida sem preocupações e com tudo aquilo que pudesse desejar.
- Pois, mas a Luna certamente sabia que eu não aceitaria esse dinheiro, que não sou pessoa de dar o devido valor ao dinheiro…
- Mas…
- Está decidido. Quero doar todo o dinheiro à “Excellence”, quero ajudar a que eles continuem a realizar os sonhos de outras pessoas, tal como fizeram com a Luna. Penso que assim estarei a ser mais coerente com a minha forma de viver e com a perspectiva de que dinheiro em demasia deve ser usado em função de objectivos maiores, como o de fazer muita gente feliz.
- O Allan é que sabe…
- É mesmo isso que eu quero. Estou certo de que o dinheiro será mais útil a outras pessoas. A minha riqueza e a verdadeira herança da Lu são os meus filhos, e deles eu saberei cuidar... Quanto à herança deles, quando chegar a altura eles decidirão…
Para espanto dos dois advogados, dei por concluída a conversa assinando uma procuração que lhes dava plenos poderes para doarem toda a minha herança à “Excellence”.
Já se fazia tarde e ainda tinha que passar no hotel para apanhar a minha bagagem. Despedi-me de todos com abraços e a promessa de regressar em breve. Com algumas lágrimas à mistura, aproveitei a boleia dos advogados e parti conjuntamente com a minha mãe e o meu irmão para o aeroporto de Atenas.
Senti-me revigorado, com paz na alma e uma vontade imensa de regressar ao activo, de voltar aos meus ouvintes, de abrir a lavandaria e, aos poucos, redecorar o apartamento para poder receber em breve os seus dois novos ocupantes.
O voo para Lisboa foi rápido e nele projectei os meus próximos passos. Queria ter a certeza de que as minhas opções seriam cumpridas ao mais ínfimo pormenor e era importante, desde logo, pensar nas diligências a tomar.
À chegada a Lisboa lá estava a minha tia Aurora à nossa espera. Ainda olhei em frente para ver se existia a lavandaria com a qual tinha sonhado na noite anterior, mas o que vi foi um “rent a car” de uma marca bem conhecida.
Pegamos nas poucas malas e dirigimo-nos para a saída. Infelizmente não vi os U2 e os táxis não estavam em greve. Entramos no carro e pedi à minha tia para sintonizar a minha rádio, já tinha saudades de a ouvir.
Na viagem não ouvi uma única voz, além de seguirem todos calados no carro, na rádio só se ouvia música. E tratava-se de uma selecção especial, até parecia que estavam a passar os meus temas predilectos, aqueles que eu repetia vezes sem conta no meu programa da noite. Que estranho, não era normal só passar música.
Como a rádio ficava a caminho, decidi surpreender a equipa com uma rápida visita e, simultaneamente, informar o meu director de que pretendia voltar ao activo o quanto antes.
Chegamos ao prédio e pedi à minha família para aguardar um pouco no carro. Cumprimentei o recepcionista e a senhora da limpeza e subi para o nono andar. Quando lá cheguei dei de caras com o meu director de programas.
- Olá Allan, finalmente! – Disse-me.
- Olá, então andaram a fazer obras enquanto estive ausente… Gosto da cor, está mais atraente, moderna, interessante… - Comentei.
Quando percorri os corredores reparei que as paredes estavam forradas a palavras de todos os tamanhos e feitios. Pareciam pequenos poemas inscritos nas paredes. Ao fundo destacava-se uma enorme placa de metal onde se podia ler “L FM” em letras gigantes.
- A Rádio mudou de nome? Perguntei sorridente.
- É Allan, agora a Rádio dá-se pelas siglas “L FM”, diminutivo de “Love FM”. E como ainda não nos disseste como pretendes formatar a rádio, limitamo-nos a emitir as baladas que mais tocaste no teu programa…
- O quê?! Agora só passamos baladas?
- Sim, até ordem tua em contrário…
- Ordem minha?! Estás a falar de quê?
- Allan, a rádio agora é tua, só tua. Dois advogados Gregos estiveram cá e informaram-nos que eras o novo proprietário da rádio. Trouxeram com eles uma empresa de decoração e, desde há uma semana, que estamos a emitir apenas música e a frequência da estação. Os locutores e jornalistas não têm dado voz à antena, estávamos à espera que chegasses para assumires o lugar vago na presidência da administração.
- Não acredito! Estás a brincar comigo.
- Não, achas que faria isso depois de tudo o que tens passado?!
- Espera, estás a dizer que a rádio é minha, que sou eu quem manda nela?
- Sim.
Olhei à minha volta e comecei a entender que algo não menos estranho estava ao meu redor. As palavras que preenchiam quase por completo as paredes dos corredores e salas eram alguns dos poemas que eu escrevera e lera no meu programa. Era uma espécie de assinatura que estava à vista de todos. Senti-me pequenino com tamanha exposição.
Apercebendo-se da minha completa estupefacção, o director deu-me os parabéns e disse que toda a equipa estava à minha disposição.
Entretanto acompanhou-me ao estúdio principal que, não sei bem como, quase triplicou em tamanho e deu-me a ver uma extraordinária réplica da estátua da Lu que está na “Casa da Luz”. Era igual, só lhe faltavam os malmequeres.
Quando me aproximei da estátua reparei que existia um envelope com o meu nome. Abri-o e li o seguinte:
- Allan, por favor, continua a iluminar a vida das pessoas, quer com palavras, quer com música, mas acima de tudo, com Amor. Lu
Era mais uma surpresa da Luna que me deixou completamente arrepiado. Dei um leve beijo na face da estátua e sorri. Estava longe de imaginar que algum dia seria dono da rádio onde sempre me limitei a ser um locutor da noite.
- Então Allan, o que queres que façamos de imediato? – Perguntou o director.
- Sei lá, quero que faças o que sempre fizeste, quero que todos façam o que sempre fizeram, quero que sintam que, a partir de hoje, esta nova rádio é de cada um de nós…
- Mas, quando pretendes assumir a direcção, quem queres ter a trabalhar contigo, que linha pretendes seguir?
- Só te peço para manteres o meu programa diário nos moldes em que estava, de resto és tu que mandas. Eu não nasci para tomar conta de uma rádio, quero que ela funcione, nada mais.
- Mas Allan, agora é tudo diferente…
- Ok, é diferente e sou eu que mando, certo?
- Exactamente.
- Então eu decido que és tu que mandas, decido que tudo será gerido por ti e que, a partir de hoje, as decisões mais importantes serão tomadas por todos como numa verdadeira democracia. Se a rádio é de todos, têm que ser todos a mandar. Assim sendo, tu geres o que todos decidirem, certo?!
- Sim, mas, mas, mas…
- Mas nada. Está decidido. Quando é que posso voltar ao meu programa?
- Quando quiseres.
- Quando Sr. Director?
- 2ª Feira, pode ser?
- Então 2ª feira cá estarei ao vivo e a cores. Agora põe toda a gente no ar e vamos dar vida à… Qual é mesmo o novo nome da rádio?
- L FM.
- Ok, 2ª feira cá estarei na “Love FM”.
E com mais esta decisão dei por “aberta” e “partilhada” mais uma surpreendente prenda da Lu.
Chegado ao carro, contei a novidade aos meus familiares, algo que, pelos vistos, tinha muito pouco de novidade, pois pelos risos já eram conhecedores do que acontecera.
A única pessoa naquele carro que, aparentemente, estava a quilómetros de distância era a minha tia Aurora. Pelos vistos, a única coisa que tinha entendido é que eu iria ser pai de gémeos e, mesmo assim, não parava de perguntar como seria possível, dadas as circunstâncias.
Pedi para ser eu a conduzir e perguntei se podia passar primeiro em minha casa, queria respirar o ar que sempre me aconchegou até à partida da Lu. Tinha saudades das nossas coisas, do nosso cantinho.
Já perto do apartamento reparei em algo estranho, a lavandaria que tínhamos comprado já estava em funcionamento e, surpresa das surpresas, chamava-se “LoveyoU”, tal como eu tinha sonhado. Parei o carro à porta e sorri ao ver um apreciável movimento de pessoas, ou melhor; de clientes. Reparei que funcionava até às 22H00, o que me fez deixar a visita para mais tarde. Estava com imensa vontade de enfrentar a casa que nunca mais visitei desde o dia da morte da Lu, tinha-me mudado para casa da minha mãe em Cascais.
Confesso que entrei receoso no prédio do nosso apartamento, qual seria a minha reacção em regressar a um local onde a última imagem era a da mulher que amei postada no chão da sala?
A minha mãe e o meu irmão fizeram questão em me acompanhar. Quando abri a porta do apartamento fiquei boquiaberto.
Todo o apartamento estava completamente diferente, inclusive as divisões tinham sido alteradas.
- Allan, esta é a tua nova casa. A Lu entendeu que as memórias deveriam ser as mais positivas e desenhou tudo o que agora podes ver. Ela quis que tu te sentisses a começar do zero mas, logicamente, sem a esquecer. Ficou pronta há dois dias, segundo me informaram em Atenas.
O apartamento T3 tinha sido transformado num amplo espaço com menos divisões, passou a ter dois quartos transformados num, uma sala gigante e uma cozinha cheia de aparelhos envoltos por uma madeira de fino recorte. A sala tinha quase 100 metros quadrados e as paredes estavam decoradas com quadros com diversos pormenores que, facilmente, me levavam para momentos marcantes da nossa vida. Destaco um quadro com bilhetes de alguns espectáculos que tínhamos assistido, alguns deles de qualidade surreal. Noutro quadro estavam pequenos papéis e guardanapos onde eu escrevera pequenas mensagens de amor para a Lu, como uma em que eu lhe dizia que adorava aqueles dois quilos a mais na sua barriga, algo que a levou a amuar e a inscrever-se num ginásio. No fundo, naquele quadro, estava um pequeno excerto das mais variadas mensagens que constantemente deixava para ela ler, era uma forma de a provocar e lembrar que a amava muito. Não havia semana em que não lhe deixasse algo escrito num guardanapo, num folheto publicitário, numa caixa vazia de cereais, enfim, não me cansava de lhe escrever e de a provocar através das palavras. Sempre gostei de brincar com as palavras, de as usar como originais provocações.
Reparei também numa enorme estrutura em vidro, uma espécie de caixa que ocupava completamente a parede ao fundo. Era o emoldurar do tapete onde a encontrei sem vida. Aquele enorme tapete vermelho tinha um magnetismo imenso, algo que era suavizado por uma folha de papel A3 que, ao centro do tapete, tinha escrito pela mão da Lu a palavra “Vive!”, parecia um contra-senso mas, por outro lado, era uma forma de me fazer pensar que o meu caminho tinha ainda muito pela frente.
O tom magenta, tão apreciado pela Lu, marcava presença em quase todos os espaços do apartamento, fosse na tinta das paredes, algumas das quais em “degrade”, ou pelas luzes que iluminavam pontos de especial destaque, como por exemplo uma pequena mas imponente mesa de vidro que parecia ser uma fonte de luz de onde sobressaía um livro. Peguei nele, chama-se “Lágrima”, e comecei a ler a longa dedicatória escrita com tinta dourada:
“ - As tuas palavras encheram a minha vida de pensamentos positivos, as tuas palavras foram um dos principais incentivos para eu conseguir ultrapassar os momentos mais tristes dos últimos dois anos, foram elas que me ajudaram a continuar a sorrir, a reunir forças para continuar a querer viver, mesmo sabendo que o fim era incontornável, mesmo sabendo que o meu sonho se transformaria num pesadelo com hora marcada. Allan, muitas vezes dei comigo a bater à porta da morte e a pedir-lhe para me dar uma espécie de tempo extra, muitas vezes tive vontade de desistir, de te contar o que estava a acontecer, de antecipar o destino. E nesses momentos mais sufocantes recorri aos teus textos e às gravações dos teus programas de rádio para encontrar razões que me levassem a continuar, foi nos teus poemas que sempre encontrei a ponte para o dia seguinte. Podes não acreditar, mas reli-te vezes sem conta, todos os dias fazia-me acompanhar por um dos teus poemas que tantas vezes lia sob um mar de lágrimas. Amor, podes não ser o melhor escritor do mundo, podes até achar que este livro não merecerá figurar numa prateleira de uma livraria, mas eu acho que as tuas mensagens merecem ser sentidas por outros, merecem ser ponte para quem, como eu, precisa de argumentos suficientemente fortes para avançar passo a passo, tristeza a tristeza, hora a hora, minuto a minuto.
Sim, é verdade, este livro é a reunião de 100 dos teus poemas, os que me acompanharam nos meus últimos 100 dias. Todos os dias, ao acordar, ia ao escritório vasculhar a montanha de escritos que aglomeravas de forma completamente desordenada, seleccionava um e levava-o comigo para mais um dia, para mais uma etapa de vontade, mais um sacrifico com um objectivo maior. Allan, foste tu quem me fez ultrapassar o tempo o tempo em contra-relógio que os médicos me diziam ser impossível ultrapassar, foste tu quem prolongou a minha vida. Hoje, este “Lágrima” está certamente a dar força a muita gente, àquelas pessoas que precisam de sentir o calor das tuas palavras para conseguirem ultrapassar momentos de completo desnorte, de completo desespero. Sei que a maioria dos teus poemas são tristes, mas, por vezes, é na tristeza das palavras que encontramos a vontade de viver mais, de valorizar cada instante, cada olhar, cada sorriso. A tristeza do que escreves é um bálsamo para as feridas que parecem não ter cura… Por favor, não pares de escrever, por favor continua a ser razão de vida para alguém, para tanta gente… É que, mesmo com lágrimas, depois de te ler, ficamos com vontade de prolongar o suspiro que nos resta, sentimos força para o desmultiplicar em sorrisos, como se fossem os últimos, como se tivéssemos vontade se os viver da forma mais intensa, da forma mais brilhante… Queremos muito que os últimos instantes da nossa existência tenham um lado extremamente positivo, um lado que fique na memória de quem mais amamos como um carimbo de felicidade. Afinal, a vida foi feita para ser vivida com alegria e é nestas alturas que temos ainda mais vontade de viver, de valorizar todos aqueles pormenores que ignoramos quando nos dedicamos exclusivamente aos problemas. Este “Lágrima”; estou certa, irá despoletar em muita gente a vontade de querer viver com mais respeito pela vida, com mais amor, atenção aos outros, com mais essências. Amor, está aqui a fórmula que me deu mais vida e foste tu quem a criou, foi graças a ti que continuei, foi graças a ti que consegui criar todos estes pormenores que tanto me fizeram sorrir ao imaginar as tuas reacções e o teu ar de surpresa. Estou certa, por exemplo, que recusaste o dinheiro que te deixei de herança. Acertei?
Logo vi, és como eu, e pensas que o dinheiro só serve para nos esquecermos da vida ou, como nestas minhas invenções, brincarmos com ele a enfeitar o que queremos transmitir a alguém que nos é muito especial. Imagino que estranhaste ao saber da fortuna que possuía e continuarmos a viver com prestações contadas ao tostão, mas também sei que pensaste que era desta forma que daríamos mais valor a cada pormenor, a cada almofada ou tapete comprados peça a peça, como que completando um puzzle. Voltando a este livro, espero que seja o primeiro de muitos e que nunca deixes de escrever, de falar com palavras que vão directamente ao coração, que fazem querer ser-se melhor pessoa, mais gente, mais autêntico. Quiçá, graças a este livro ainda terás os teus 15 minutos de fama, o tempo necessário para lavar a roupa suja e entrega-la ao cliente, mesmo que o aeroporto seja ao virar da esquina da nossa rua… Obrigado. Lu”
É impressionante a forma como a Lu conseguia continuar a mexer comigo com acções que nunca julguei ser capaz de criar, mesmo sendo ela uma criativa nata. Tantas vezes recordo os seus sonhos, os seus projectos sem primeiro passo, tantas criações em voz alta que não redundavam em acontecimentos. Hoje, ela deixa-me resultados, numa altura em que já não a posso ouvir inventar.
Sinto-me completamente rodeado pela sua presença, sinto-me preenchido por uma vontade de viver que parece inesgotável, sinto-me só mas acompanhado em cada recanto da minha existência.
Quem diria que um dia teria um livro publicado, logo eu que sou dado a uma preguiça de todo o tamanho, logo eu que não termino a maior parte dos projectos que invento.
Abri o livro a meio e fui ler um dos meus poemas que a Lu publicara.

O Eu é um Instante
que tenta sobreviver,
que se dá e cresce,
sempre no medo de errar.
O Eu é uma Memória
feita de retalhos e gentes,
com mais energia do que força,
sempre no medo de morrer.
O Eu é uma Luta
que nunca é ganha,
que vive de momentos
sempre no medo de (se) perder.
Eu? Será que Eu sei?

Fiquei impressionado com a forma como as palavras que escrevi no passado tinham hoje uma leitura completamente diferente, faziam o sentido que, na altura, não tinha razão de ser, já que escrevo ao sabor do “teclado” e não em função de um determinado objectivo ou tema.
Continuei a folhear o livro e dei com mais um texto que, hoje, assumia uma realidade surpreendente.

O tempo nasce num instante
faz-se luz numa palavra
e o sim transforma-se em ponteiro.
É como partir do nada
para corrigir degrau a degrau
e chegar ao tudo que é a meta.
Há que ter tempo para o tempo
servir o ser e gerar o acontecer
com a certeza de que o mundo...
...começa Hoje.

Já nem me lembrava do que tinha escrito, já nem me lembrava das razões, se é que as houve, para escrever o que agora lia com uma clareza jamais percebida.
Por longos minutos dei comigo a reler o que escrevera e a imaginar tudo o que a Lu poderia ter pensado ou imaginado de cada vez que lia ou ouvia o que eu escrevera. Cada poema tinha um sentido que parecia encadear-se com tudo o que vivera, parecia ficar em sintonia com o meu passado, presente e futuro. Era tudo tão real.

Onde pára o teu incenso
Como cresce o teu saber
De que mão foge a essência
De quem é o teu viver?
Porque vestes desalinho
Em que fantasias te escondes
Quem fez de ti estátua
Porque é que não respondes?
Porque és nuvem devorada
Com que pele reencarnas
Onde és esconderijo ancorado
Porque alma já não reclamas?
Foi feitiço ou decepção?
Diz-me que sim... ou que não.

Decidi fechar o livro e ir conhecer o quarto onde tantas vezes usáramos outro tipo de palavras, onde sempre nos despedíamos do “ontem” com um “Amo-te” e a certeza de que no “amanhã” seria mais um dia a dois, mais um dia onde o objectivo era sempre o mesmo; sermos ainda mais felizes.
Quando entrei naquele quarto completamente renovado sorri ao ver uma cama gigante do género que sempre sonháramos comprar, uma cama “king-size” com traços orientais, era igual a que eu tinha usado em Koh Samui. O quarto estava todo decorado com mobiliário e objectos orientais. Na parede em cima da cama estavam incrustadas umas letras onde se poderia ler “kòrp-koon”, uma das poucas palavras que aprendera na Tailândia e que significava obrigado.
Não sei bem explicar, mas todos os recantos da casa estavam completamente diferentes do apartamento que compráramos poucos meses antes da Lu falecer, o apartamento que combináramos decorar mês a mês e para o qual tínhamos destinada uma parte dos nossos rendimentos mensais.
Entretanto, a minha mãe chamou-me e disse-me que havia mais para ver. Efectivamente havia uma escada em caracol que nos levava par ao andar de cima, o último do apartamento com um enorme terraço e de onde se podia ver ao longe o rio Tejo.
Este andar estava todo pintado com cores alegres e com desenhos animados de brilhavam no escuro. Era uma espécie de Disneylândia em tamanho pequeno que, certamente, seria o sonho de qualquer criança. Todo o andar estava repleto de brinquedos, alguns deles de tamanho real. Todo este andar estava destinado ao filho que a Lu sabia que iria nascer, o filho que ela tanto desejara e que iria conhecer a luz graças ao sacrifício da mãe. Era uma visão triste, mas por outro lado, é sempre bom quando a morte gera uma nova vida, como era o caso.
Não menos interessante, é que todo andar não tinha divisões, as paredes tinham sido derrubadas e as diversas áreas eram separadas por insufláveis e brinquedos suspensos que lhe proporcionavam um ar de mundo mágico. Não sei, mas era como se uma criança entrasse no “Toys’R’Us” e sentisse que todos os brinquedos eram seus e que poderia lá estar o tempo que entendesse.
Fiquei comovido, algo que fez com que o meu irmão interviesse.
- Allan, também tens brinquedos para ti. – Disse.
Arrastou-me até ao terraço e pediu que espreitasse para o outro lado da rua.
Olhei e vi dois Minis estacionados ao lado dos bidões de cinquenta litros que eu e a Lu tínhamos transformado em mealheiros gigantes. Um era vermelho e o outro amarelo, as cores que tínhamos decido para quando tivéssemos dinheiro suficiente para comprar os carros.
- Vês, foi bom terem poupado. Disse-me o Ferdinand com um sorriso.
- Sim, sim… - Respondi com a certeza de que com o montante que tínhamos amealhado no máximo compraríamos um pneu.
- O Vermelho é para os dias da semana, o amarelo é para o fim-de-semana…
- Esta Lu é realmente, enfim, já nem sei o que dizer…
Mas com tudo aquilo, não sei bem porquê, senti que ainda me faltava algo, faltava-me a Lu, ausência que eu tentava compensar com os gémeos que em breve iriam nascer.
Entretanto, o meu irmão e a minha mãe decidiram ir embora depois de eu ter pedido para ficar sozinho a desfrutar a companhia da Lu naquela casa que, a partir daquele dia, voltaria a ter vida, voltaria a ter felicidade.
Despedi-me e, passados uns minutos, tocaram à campainha. Dirigi-me à porta, abri-a e perguntei:
- Vá, o que é que a esquecida da mãe deixou cá ficar? - Perguntei
- Olá Allan, sou eu.
- Tu, como é que estás aqui, como é que chegaste até aqui?
- Allan, eu amo-te. Eu amo-te mesmo. Só te peço para me ouvires, depois vou embora…
- Isto não pode estar a acontecer, não suporto mentiras, não quero saber mais nada, por favor vai embora!
Empurrei-a para fora e acabamos por cair um em cima do outro no hall da entrada. Não sei como mas acabamos a beijar-nos perante o olhar atónito de uma vizinha de idade que saía do elevador.
Entre beijos e empurrões acabamos por nos deixar ir pelo calor das emoções, acabando sentados na porta de entrada a chorar copiosamente.
Não conseguia dizer nada e tudo o que ela me dizia parecia o mais profundo silêncio. À cabeça só me vinha o sorriso da Lu e todo o passado em jeito de “flashback”, todos os momentos de alegria que vivera com ela…
Entretanto a Shi Noah deu-me um forte estalo e gritou-me:
- Ouve Allan! Eu estou aqui! Eu sei que também me queres perto de ti, eu sei que podemos ser felizes um com o outro. Estás a ouvir-me?!
- Não, não, eu não te amo. Eu não te quero. Tu és a amiga mais próxima que tive nos últimos e difíceis tempos, mas nem a tua amizade é bem-vinda à minha casa, à minha vida.
- Não estás a entender Allan, nós temos um futuro pela frente, nós vamos ser felizes…
- Shi Noah, ouve-me! Eu amo a Lu, eu tenho a Lu, é com ela que vou viver para sempre, é com ela que eu quero estar, é com ela que eu vou ficar.
- Hás-de querer-me e não ter. És um filho teimoso, um burro que prefere viver agarrado à morte, agarrado a um passado que não te levará a lado nenhum… - Disse a Shi Noah numa mistura de lágrimas e raiva.
E nisto, sem perceber bem como, surgiram a Rute e o Jorge que, a custo, retiraram-na da minha frente, obrigando-a a ir embora.
Voltei a entrar dentro de casa e olhei à minha volta. Senti que tudo estava no lugar, que aquele era o meu espaço, o meu mundo, que estava ali a minha vida. Para quê procurar substituir alguém que jamais chegaria aos calcanhares da Lu, para quê tentar substituir o insubstituível. Estava certo de que a minha vida seria facilmente preenchida com a chegada dos meus filhos e com todos os novos objectivos a que a Lu tinha dado forma e consistência. A rádio, a lavandaria, o livro, a nossa casa, a nossa história, o nosso sempre, aquele a quem nem a morte conseguira destruir.
Entretanto a Rute e o Jorge regressaram para me entregar uma capa com uma enorme colecção de DVD.
- Desculpa Allan, estamos certos de que a Shi Noah não voltará a incomodar-te. – Disse a Rute.
- Também já não me interessa, percebi que não estou interessado nela nem em ninguém… Que DVD são estes? – Perguntei.
- Ahh, são da Lu. Ela disse que adoras DVD e por episódios, por isso gravou estes só para ti, disse que é para usares no vosso dia-a-dia, que têm as frases que mais usaram ao longo de todos estes anos. A Lu garantiu que saberás dar-lhe o guião mais apropriado. – Respondeu.
Despedi-me da Rute e do Jorge e fechei a portana certeza de que esta era a última vez que os via. A missão estava cumprida e com o sucesso desejado por quase todos.
Fui ao frigorífico, abri uma cerveja, coloquei um dos DVD no leitor, sentei-me no sofá em frente ao plasma e… Carreguei no Play.
Como sempre, lá estava a Lu resplandecente a falar comigo com aquele sorriso que me fazia tão feliz.
- Olá Amor, e se hoje ficássemos em casa no “dolce fare niente”?!
- Sim, é isso amor, “dolce fare niente” para sempre. – Respondi-lhe.

FIM
(como bónus, ainda haverá uma espécie de prelúdio)

10 comentários:

Sunshine disse...

ENfimmmmmmm !!!! Vou ler agora com muita mas mesmo mt calma.

Obrigado FM.

BJinhosssssssssssss

FM disse...

Espero que gostes... e Obrigado.

Sunshine disse...

Suspiroooooo.

Final perfeito!!!

Como já te disse, alguns Capitulos atrás, é das melhores coisas que tenho lido ultimamente.... e mais não digo porque a emoção me prende as palavras ....

BlueVelvet disse...

Agora que chegou ao fim, vou ler como um livro, que é .
Beijinhos, veludinhos azuis e boa semana

FM disse...

Obrigado Sunshine. És uma querida.
Beijos e Boa Semana.

FM disse...

Olá Blue. Não leias, deixa-me arranja-lo primeiro.
Beijos.

Miriam disse...

Perfeito FM...O final é algo assim....surreal, nada poderia ser diferente...
Teu carinho e sensibilidade fizeram toda a diferença nesse Làgrimas...Que isso seja uma constante na tua vida...vc é especial...
Fico na espera do pedido do meu endereço para mandares uma cópia autografada, ok?

Até um outro Lágriams...
Bjuss de carinho aos 3

FM disse...

Assim será Mirmorena, assim será... Deixa-me corrigi-lo, com calma...
Beijos com um Enorme Obrigado. Espero não ter decepcionado.

Xanda disse...

Excelente, FM ficou mesmo muito bom!
Há muito tempo que não me dedicava à leitura de um livro, mas este é sem duvida um "futuro" bom livro, do qual quero um exemplar.

Tens de te dedicar mais à escrita, porque tens esse dom Francisco, não o percas por favor!

Bjnhs

FM disse...

Olha outra suspeita! (risos)
Obrigado Xanda, principalmente por te teres dado ao trabalho de me ler.
Claro que te darei o exemplar fotocopiado... com imenso prazer.
Beijos e, uma vez mais, Obrigado.

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